COTAS
A incoerência é típica dos
desagradecidos. É o auge da hipocrisia individualista, o que há de mais nojento
no ser humano. A cena patética de cuspir no prato e enfumaçar a história.
Depois que o Brasil começou recentemente a política de cotas, a algaravia da intolerância tomou conta do país. A cota, no geral, é um pequeno acelerador para retirar as pessoas da naturalização da miséria, um meio temporário de correção histórica da condição imutável da pobreza. Se a política de cotas é essencial em sociedades estratificadas, pode-se imaginar a sua necessidade neste Brasil amaldiçoado pela escravidão e etnicídio dos povos indígenas.
Nos meios de comunicação
observa-se o triunfo de uma enganosa ética do trabalho, o elogio do esforço
individual, como se seus porta-vozes levantassem como fênix das cinzas das
dificuldades para o voo da prosperidade. Gente empobrecida, ao mesmo tempo,
amaldiçoa os cotistas, culpando-os pela sua condição de pouco progresso, apesar
de trabalharem a vida toda como jumentos. Invariavelmente realizam o elogio do
trabalho, do esforço pessoal, sem questionarem aqueles que acumulam os produtos
de seu esgotamento e imutabilidade social.
Nos ambientes sociais,
invariavelmente, escuto descendentes de imigrantes condenarem a política de
cotas. São ignorantes ou hipócritas. A parte rica do Rio Grande do Sul e outras
regiões do Brasil é o presente de cotistas do passado. As políticas de
colonização do país foram as aplicações concretas de políticas de cotas. Aos
servos, camponeses, mercenários, bandidos, ladrões, prostitutas da Europa foi
acenado com a utopia cotista. Ofereceram-lhes em primeiro lugar um lugar para
ser seu, um espaço para produzir, representado pelo lote de terra; uma colônia
para que pudesse semear o seu sonho.
E lhes alcançaram juntas de
bois, arados, implementos agrícolas, sementes, e o direito de usar a natureza –
a floresta, os rios e minerais – para se capitalizarem. No processo, milhares
não conseguiram pagar a dívida colonial e foram anistiados. E quando
ressarciram foi em condições módicas.
Sendo cotistas do Brasil
puderam superar a maldição de miseráveis, pobres, servos, e de execrados
socialmente. Muitos sequer podiam montar a cavalo, hoje, seus descendentes são
até patrões de CTG, mas condenam as cotas, a mão, a ponte, o vento benfazejo,
que mudaram a vida de suas famílias.
No início, no século XVIII,
sobre os territórios dos charruas, minuanos, kaingangs e guaranis se aplicou a
cota de “sesmaria”, um módulo de algo em torno de 13.000 (sim, treze mil)
hectares. Se exterminou dois povos nativos para se formar a oligarquia. Em
seguida, na metade do mesmo século, aos casais açorianos, destinaram-se
“datas”, equivalentes a 272 hectares. No século XIX, aos imigrantes,
concederam-se as “colônias”, de mais ou menos 24 hectares. E vieram as
colonizadoras particulares e as secretarias do Estado sobre os territórios dos
kaingangs e guaranis. E depois a reforma agrária. E mais os programas de
expansão da frente agrícola no Brasil central, no Mato Grosso e na Amazônia,
com filhos do Rio Grande, na maioria as primeiras gerações dos imigrantes.
Portanto, o Rio Grande é o
produto dos cotistas, os quais demandaram sobre outras regiões do país.
E nesta história, a conclusão
é óbvia: dificilmente se encontra um indivíduo que não tenha tido familiar
cotista. A formação do mercado capitalista de força de trabalho é outra
conversa. Faz parte do sistema. Como integra a perversão social o fato
histórico de que os proprietários tendem ao individualismo, à baixa
solidariedade, ao acúmulo sem compromisso cidadão. Demonstram isto os herdeiros
dos cotistas do passado e dos programas de incentivos recentes, com a
discriminação, a falta de solidariedade, exacerbado racismo, e o típico deboche
dos idiotas.
*Tau
Goliné jornalista e historiador.
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