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sábado, 22 de setembro de 2018

Crônica de Fernando Sabino


O texto que você vai ler é uma crônica de autoria de Fernando Sabino, mineiro de Belo Horizonte, que nasceu em 1923 e morreu em 2004. Foi locutor de rádio, colaborou com artigos, crônicas e contos em revistas, conquistando muito prêmios. O romance O encontro marcado, de 1956, foi o grande impulso para sua carreira literária. Depois disso, Sabino resolveu viver exclusivamente como escritor e jornalista.



O HOMEM NU



Ao acordar, disse para a mulher:

        — Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa.  Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

        — Explique isso ao homem — ponderou a mulher.

        — Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.   Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.

        Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.  Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

        Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

        — Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

        Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

        Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...  Desta vez, era o homem da televisão!

        Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

        — Maria, por favor! Sou eu!

        Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

        Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

        — Ah, isso é que não!  — fez o homem nu, sobressaltado.

        E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pelo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

        — Isso é que não — repetiu, furioso.

        Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.  Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.  Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer?  Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

        — Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

         Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

        — Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu...

        A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

        — Valha-me Deus! O padeiro está nu!

        E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

        — Tem um homem pelado aqui na porta!

        Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

        — É um tarado!

        — Olha, que horror!

        — Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

        Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

        — Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

        Não era: era o cobrador da televisão.



Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.




Vigarice: Ato de trapaça; fraude.

Lanço: Parte de uma escada entre dois patamares sucessivos; o mesmo que lance.

Grotesco: Ridículo, extravagante.

Encetar: Iniciar, começar.

Em pelo: Nu, pelado.

Pesadelo de Kafka: Referência ao escritor checo Franz Kafka, que criou histórias fantásticas com toques de terror e situações incomuns. Muitas vezes, seus personagens se sentiam assustados e em agonia, como se vivessem um pesadelo.

Regime do Terror: Referência ao período da Revolução Francesa compreendido entre 31 de maio de 1793 e 27 de julho de 1794, em que milhares de pessoas foram executadas na guilhotina por se oporem ao governo e às ideias de Maximilien de Robespierre.

Estarrecida: Espantada, horrorizada, perplexa.

Radiopatrulha: Veículo da polícia, equipado com rádio.

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