O texto que você vai ler é uma
crônica de autoria de Fernando Sabino, mineiro de Belo Horizonte, que nasceu em
1923 e morreu em 2004. Foi locutor de rádio, colaborou com artigos, crônicas e
contos em revistas, conquistando muito prêmios. O romance O encontro marcado,
de 1956, foi o grande impulso para sua carreira literária. Depois disso, Sabino
resolveu viver exclusivamente como escritor e jornalista.
O
HOMEM NU
Ao acordar, disse para a
mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de
pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro
da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a
mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir
rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto
aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama,
dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá
dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu
a porta de serviço para apanhar o pão.
Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para
outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo
padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia
aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si
fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a
campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor.
Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas
ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da
televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu —
chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia
lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta
do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares,
esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento,
sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir:
ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de
pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão,
parecia executar um ballet grotesco
e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder.
Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar,
e a empregada passava, vagarosa, encetando
a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da
testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador
se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a
porta do elevador e daria com ele ali, em
pelo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado,
que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a
viver um verdadeiro pesadelo de Kafka,
instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e
abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a
momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu
andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência:
parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência,
largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava,
desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se
abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro
no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha
do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele,
confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria,
vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha
filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu
finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se
precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois,
restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda
ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
Esta
é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino.
Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág.
65.
Vigarice:
Ato
de trapaça; fraude.
Lanço:
Parte
de uma escada entre dois patamares sucessivos; o mesmo que lance.
Grotesco:
Ridículo,
extravagante.
Encetar:
Iniciar,
começar.
Em
pelo: Nu, pelado.
Pesadelo
de Kafka: Referência ao escritor checo Franz Kafka, que criou histórias
fantásticas com toques de terror e situações incomuns. Muitas vezes, seus
personagens se sentiam assustados e em agonia, como se vivessem um pesadelo.
Regime
do Terror: Referência ao período da Revolução Francesa compreendido entre 31 de
maio de 1793 e 27 de julho de 1794, em que milhares de pessoas foram
executadas na guilhotina por se oporem ao governo e às ideias de Maximilien
de Robespierre.
Estarrecida: Espantada,
horrorizada, perplexa.
Radiopatrulha:
Veículo
da polícia, equipado com rádio.
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